quinta-feira, 17 de março de 2022

Guerra do Paquisha - o conflito Peru -Equador na Cordilheira do Condor 1981


Ponte sobre o rio Zaumilla entre Aguas Verdes, Peru e Huaquillas, Equador: aqui aconteceu o intercâmbio de estrangeiros (Foto wipedia, ilustrativa): deve estar havendo alguma cerimônia) 

Esta é a historia de um dia em que me senti importante

Em janeiro de 1981 Peru e Equador se enfrentaram. Na região ate hoje de difícil acesso na Cordillera del Condor, vários postos de fronteira ficavam um na frente do outro. Uma vida difícil servir ao Exército e montar guarda em um lugar onde o inimigo mora em frete mesmo em tempo de paz. A cabeça dos rapazes fica bagunçada. Uma expedição militar de um dos lados descobriu que o outro tinha avançado e estava na margem do outro. 

Foram apresentados protestos nas capitais dos dois países. Os rapazes na linha de fronteira viram o sangue subir para a cabeça. De repente, houve um tiro. Uma resposta, mais tiros e os países se declararam em guerra. As fronteiras fecharam. E tropas de verdade foram mobilizadas. Reservistas chamados, propaganda nas TVs jogaram um povo contra o outro. Péssimo momento para turistas na região. Eu estava chegando na cidade de Tumbes fronteira Peru-Equador. Eu nem sabia que Tumbes existia antes. A fronteira estava fechada. Fui acolhido por uns rapazes que participavam de uma "invasão" de uma área pública no deserto. Era deserto mas era perto do mar e por incrível que pareça havia um mangue com muito caranguejo (Esse mangue hoje é área protegida nos dois lados da fronteira.  

O movimento de compra, venda e travessia de mercadorias era intenso na ponte. A guerra fez sumir todo mundo durante uns 20 dias 


Um dia uma equipe da PIP (Polícia) veio dar uma olhada nos moradores e me descobriu ali. A situação migratória estava tranquila. O oficial me tratou bem. Escutou minha história e me informou que eu era muito importante para o Peru. Me disse que como brasileiro eu era cidadão de um "país avalista". Avalista de quê? O que o Brasil teria garantido para o Peru, empréstimo? Ele explicou que não. Avalista ou "garante" do Tratado de 1942 ou Tratado do Rio de Janeiro. Eu nem sabia de tratado nenhum e nem muito bem o que era o Tratado de 1942. Os policiais me levaram à delegacia e me anotaram como turista de "país garante". Por onde eu passava, escutava bochichos como "ele é do País Garante". Finalmente chegou o dia da fronteira abrir, primeiro só para estrangeiros atravessarem e testar a recepção dos dois lados. 

Por este momento, o povo da fronteira havia esquecido dos longos anos de comércio, contrabando, amizades e ruas lotadas de gente fazendo compras na área de fronteira de Zarumilla / Aguas Verdes, pelo lado peruano e Huaquilla, no lado equatoriano. Até 24 horas antes todos podiam se matar porque, temporariamente, não era pecado. 

No dia da travessia entre os "garantes" estávamos eu,  minha esposa e meu filho. Entramosi na cabine  dos policiais e eles agradeceram, elogiaram o passaporte brasileiro e revistaram, numa boa, minha bagagem. "Você tem que ter orgulho deste passaporte. Não é como o dos (não vou dizer).

Informaram que qualquer coisa que falasse do Peru, mapas, revistas, jornais, cartões postais seria confiscada. Não tinha muito. Até então eu não sabia que eu e minha família seríamos os desbravadores da reabertura da fronteira. Na hora H, nos soltaram e disseram: podem ir! 

E deu a ordem: Abrindo para o País Garante! Meu peito estufou e os peruanos olhavam sorrindo com admiração. Meus colegas da invasão, lá do deserto,  também estavam na pequena multidão. Eles estavam com o pé atrás com os equatorianos e me disseram que se tivesse problema poderia  voltar, a gente consegue um terreno pra vocês!

Corre um rio (Zarumilla) entre Peru e Equador. A ponte é estreita e o rio estava seco. Do outro lado, no Equador liberaram um casal na mesma cerimônia. Era um casal suíço. A Suíça é pais neutro, europeu e na cabeça dos tumbenses tinha alguma coisa a ver com a Cruz Vermelha que estava na cidade ou até com a profissão da enfermagem. 

No meio da Ponte, encontrei os suíços. Intercambiamos informações. Eles adoraram o Equador: Galápagos, Quito, Otavalo, Amazônia antes do conflito. Durante o fechamento da fonteira ficaram em Guayaquil. 

O que exigiram na fronteira? Papéis e documentos, fotos. Tem alguma coisa? Os suíços disseram que os equatorianos fizeram a mesma coisa. E o Brasil é pais neutro? perguntaram os suíços. Respondi que eu havia acabado de descobrir que o Brasil foi país avalista do Tratado que acabou com a mesma guerra em 1942. Então esse problema é antigo? 

Ao chegar no Equador fui recebido com o mesmo privilégio: "ciudadano de país garante". Mesmas perguntas, tem mapas do Peru, fotos, cartões postais, como está a situação? Que disseram de nós? Como chamam a gente?  Eu exitei mas tive dizer que os equatorianos eram chamados de "gallinas". O equatoriano disse que os peruanos eram "monos" (macacos). Perguntou qual era minha opinião: eu disse que como cristão de igreja que havia nos dois lados da fronteira eu considerava os dois como filhos de Deus e que não sou de usar apelidos para pessoas. "Deus não faz acepção de pessoas". O próprio agente se encarregou de fazer contato com a minha organização. 

Para mim foi uma introdução forçada às ferramentas das relações internacionais. Descobri que o conflito de 1981 era a terceira edição dessa guerra que foi repetida em 1995 desta vez com o uso de caças das Forças Aéreas do Peru e do Equador. Parece que os dois países finalmente assinaram um Tratado de Paz. Na grande região do Paquisha, hoje, há um esforço de fazer valer um Parque Nacional e lutar contra o garimpo ilegal de ouro. 

Depois tive oportunidade de conhecer um posto militar avançado equatoriano na boca do rio Güepi, um rio que a maioria dos peruanos de Lima não conhece. 

A região é um trifínio ou três fronteiras. Peru e Equador têm bases na desembocadura do rio Güepi no encontro com o rio Putumayo que leva ao Brasil e é chamado de Iça. A situação era tensa. Do outro lado do rio  estava a Colômbia, com uma destacamento militar parecido. O conflito de 1981 atiçou lembranças do conflito de 1932-1933 quando a Colômbia atacou Güepi. Havia um terceiro ator e fonte de perigo: a guerrilha no lado colombiano. 

No meio de tudo isso, o rio Putumayo descia calma, tranquila, lindamente. Com águas de tom escuro que refletia a selva. Foi meu primeiro contato com a Amazônia. No meio dele descia um rebocador colombiano empurrando  um "comboio" de balsas levando produtos, incluindo uma dúzia de bois, para Letícia ao lado de Tabatinga. Mas esta é outra história. Foi aí que conheci a primeira mulher amazonense. Eu disse a ela que estava regressando ao Brasil pela porta do fundo. Ela quase me bateu! Fundo é o Sul. O Brasil começa aqui.  

Área em vermelho corresponde a Tabatinga (AM) coladinha na parte final da Linha Tabatinga-Apaporis, do Trapézio Amazônico (Wikipedia) 

As crianças brasileiras aprendem  fundamentalmente que o Brasil tem fronteiras com todos os países da América do Sul com a excepção do Chile e do Equador. Isso é 100% verdade em ralação ao Chile. Mas o Equador já teve fronteira, embora muito estreita com Tabatinga, Amazonas, Brasil fundada em 1866 sem ter sido reclamada por nenhum dos países vizinhos. Depois no lugar dele e fruto de outro conflito, o Peru expulsou o Equador  e mais tarde em outro conflito, o Peru teve que ceder uma faixa de terra de 120 km, mais ou menos, de frente para o Rio Amazonas para a Colômbia. É o chamado Trapézio Amazônico ou seja 120 km no rio Amazonas com uma linha reta divisória que vai de Tabatinga até o rio Apaporis. É chamada Linha Tabatinga-Apaporis. Foi nessa linha que nasceu meu grande interesse por marcos de fronteira.  

Nota: espero que o texto não tenha ficado confuso.E não me faça perguntas difíceis. Tem coisa que ainda não dá para falar.  

Nenhum comentário: