Porto de Maceió observado de um mirante no Farol. Um dia trouxe uma viajante francesa aí sem saber que ela era a atriz Jeanne Moreau (1928-2017). Só descobri, no outro dia, no Jornal de Alagoas, que ela era a estrela de um filme de Cacá Diegues que começaria a rodar naquela manhã no interior (foto do site JB na Estrada) |
Primeiro os padres ganharam um extensa área de terra onde construíram um igreja e uma casa de caridade chamada de Casa dos Pobres. As terras dos padres ia do local onde ainda está (eu acho) até a beira da Lagoa Mundaú. Beira da Lagoa é uma frase forte e tem muitos significados.
No tempo da Segunda Guerra Mundial, depois que o Brasil entrou na guerra, os Estados Unidos, o país, instalou uma base militar que se chamou US Navy Air Facility Maceió em uma área de terra que ia da Beira da Lagoa até o limite com as terras da Casa dos Pobres. Uma extensa área alagadiça foi aterrada dando origem ao que na minha época eu via como o Vergel do Lago. Nessa área do Vergel os americanos construíram um dique que adentrava a Lagoa para receber aviões da USNAV NAF. Hidroaviões civis já aquatizavam em diferentes pontos da Lagoa desde os anos 1920.
Como o dique do Vergel era um de meus lugares preferidos, me lembro de uma enorme rampa de madeira que possibilitava o desembarque de carros que chegassem até aí em barcos ou balsas com destino à base militar. Esta rampa de madeira podia ser levantada para impedir a entrada de veículos inimigos. Ainda cheguei ver as correntes que levantavam essa "porta".
Mas independente do que os militares fizessem com a "Pista do Vergel", ela serviu para meu primeiro acidente de bicicleta. Como a pista era longa, pedalei com todas as minhas forças para atingir grande velocidade. Meu plano era chegar até o fim da rampa e freiar derrapando lateralmente. A intenção era mostrar minha proeza para o público presente especialmente as meninas. Como a bicicleta não era minha, eu não conhecia os truque dos freios e terminei atraindo a atenção de todos presentes na pista que queriam ver se eu eu tinha morrido. O pior é que esta não foi a única vez que me esborrachei no chão de bicicleta. Na última vez eu já tinha passado dos 40 anos desta vez na Serra da Bodoquena. Bem longe da minha Lagoa nativa.
Ainda nas proximidades da Pista do Vergel os americanos construíram alojamentos. Não ouso dizer quantas casas eram. Com o fim da guerra, os Estados Unidos passaram a infraestrutura para o Brasil, que passou para Alagoas que passou ao Município que repassou as casas em um projeto de habitação popular. Me lembro com carinho da arquitetura daquelas pequenas casas. Tinha cara de Filipinas, Samoa ou Tuvalu.
Além de ligar os dois pontos estratégicos e logísticos para a aviação da cidade e do Brasil, a Rua Santo Antônio serviu de pista para minhas primeiras caminhadas no mundo.
Sem avisar nada a ninguém, um dia sumi de casa e fui andando sozinho desde uma interseção da Rua Santo Antonio até o Palácio do Governo na Praça dos Martírios e voltei. Em casa, com todo mundo preocupado, fui recebido com alívio e uma surra para nunca mais repetir aquilo.
Além da Casa dos Pobres, a Rua Santo Antônio tinha o Bar da Irmã Terezinha, o Colegio Municipal, o Cine Lux (onde assisti filmes como Godzila, Dio come ti Amo), uma loja chamada Casa Brasileira, uma funerária de um fúnebre conhecido, estava o prédio da Saúde Pública, era parecido como uma UBS, a Praça e a Igreja da Graça, no bairro da levada (foi no brejo da Levada que eu observei meu primeiro Tiziu) , atravessava o Mercado Municipal, os trilhos do trem e chegava até a Praça dos Martírios onde estava o Palacío dos Martírios ou Palácio do Governo antiga sede do Governo de Alagoas.
Da Praça dos Martírios em frente
Da Praça dos Martírios, seguindo em frente, uma ladeira levava ao bairro do Farol que está na lista dos afetados pelo afundamento causado pelo espaço vazio deixado pela mineração da sal-gema. Logo depois dessa ladeira, havia a Igreja Assembleia de Deus do Pastor Barros. O pastor Barros era alvo de meu pai, do Robson e do Dogival, este último pastor adventista em disputas religiosas verbais que me pareciam verdadeiras brigas de galo. Eu sonhava em poder organizar minhas próprias batalhas.
Bem mais adiante continuando a avenida que substitui a rua Santo Antonio rumo ao Tabuleirol estava o Hospital dos Usineiros, que hoje foi evacuado por causa do afundamento. Hoje o Hospital mudou de nome e um dos últimos nomes pelo que vi foi Hospital do Agronegócio da Cana de Açucar. Mudança de nome é mudança de nome! Um dos ambientes deste hospital se chamava Sanatório, um local visto com medo e desconfiança pelas crianças porque a maioria dos pacientes da casa sofriam de turberculose e tuberculose matava. Me lembro da Inês, sendo internada lá e o filho dela, o Everaldo passando uns dias na casa de minha família. Alguns conhecidos não voltaram do hospital.
Lagoa e barreira - área minerada sob meus insgnificantes protestos |
Da Praça dos Martírios à esquerda
Voltando à Praça dos Martírios virando à esquerda dela estava a Rua Hermes da Fonseca. Esta rua levava ao Bebedouro. Pelo menos uma vez por ano ainda sonho que estou no Bebedouro, ou na frente de algum casarão com histórias que até hoje desconheço. Uns casarões estavam entre a rua e o banhado da Lagoa. Outros estavam no lado oposto, frente para a rua e fundos para as "barreiras".
Antiga Casa de Repouso Dr. José Lopes |
Barreira é outra palavra marcante e um dos detalhes da geologia complicada do nordeste. Esse encontro entre mar e barro é interessante. O que é barro? De vez em quando dávamos enormes pernadas em direção ao Bebedouro, eu e meus irmãos, às vezes minha mãe ia junto. É no Bebedouro onde o rastro do afundamento atual se vê com maior violência. Até a clínica do Dr. José Lopes, vejo fotos, foi evacuada. A clínica psiquiátrica lembrava um paraíso.
Um prédio de estilo clássico no meio de uma vegetação frondosa, bem cuidada, com jardins, com lago e gansos. Ver os pacientes de branco naquele paisagem na minha cabeça de oito anos, eu enxergava o paraíso, céu. Uma pessoa querida era internada neste estabelecimento pelo menos uma vez por ano. Quando não havia vaga no Dr José Lopes e ela era levada para casas de arquitetura normal, eu sentia que o estabelecimento já era parte da família das cadeias e purgatórios.
A Lagoa
No meu círculo cultural e social a lagoa era lagoa e só. Mas hoje se destacam três palavras em relação a ela: Lagoa, Laguna e Lago. Laguna seria o termo técnico por ser um corpo de água salobra por encontrar-se com o mar. Mas para mim ela é lagoa e pronto. No tempo dos americanos, ela aparecia nos mapas como Lagoa do Norte. Prevaleceu o nome Lagoa Mundaú. Uma das características da lagoa é a lama, escura e com um cheiro forte. Aquela lama é o berço do sururu. Um marisco ou que dentro da lama forra o fundo da lagoa. Andando descalço na lagoa a com na altura do joelho a gente sentia a lama e as partículas das cascas do sururu especialmente quando elas entravam nos pés. O próximo passo era abaixar e tentar pegar com as mãos a maior quantidade de lama possível. Trazê-la para fora e colocar numa bolsa, lata, saco.
Entre o Mar e a Lagoa: Ponta Grossa à direita rumo sul (Fonte da foto). Meus primeiros 20 anos rodando neste miolo |
Depois todo sururu trazido para fora tinha que ser lavado. Aquele sururu era comida da boa, barato, grátis, forte e muito gostoso. Era o seguro comida de toda a população pobre. Minha família não era sururuzeira. A gente, minha mãe, irmãos. tias só organizava expedições à Lagoa quando a situação ficava um pouco difícil.
Mas muita gente da beira da lagoa vivia só de sururu e havia como continua havendo hoje graças a Deus, uma divisão do trabalho do sururu: há quem tire, há quem lave, há quem carregue e as "despenicadeiras". Geralmente são mulheres as depeniqueiras. Mas há bons depeniqueiras. E há as crianças. Eu era razoavelmente um bom depenicadeiro mirim. Era uma festa. O sururu é um produto de mão de obra intensiva. Além de depenicar ainda há o verbo descascar.
Nessa época o sururu era comida de pobre. Pouco a pouco o sururu foi ficando mais raro. A lagoa sofria de uma espécie de mau olhado do governo. Começaram os ataques à lagoa na forma de aterro. Eram aterros que avançavam sobre a lagoa para todos os lados e por fim por volta de 1974 começaram as obras para a exploração da sal-gema, começou a poluição e começaram os problemas da lagoa. É como se a lagoa tivesse perdido seu lugar no coração dos alagoanos de municipios vizinhos da lagoa. E agorinha falam que sururu pode ser extinto
A chegada da sal-gema, foi o símbolo de minha desistência de continuar coexistindo em Maceió com pessoas que viam no ataque à natureza da Lagoa e lagoas, rios como progresso e garantia do futuro.Para mim a Lagoa Mundaú é o símbolo global. Continúo assistindo anúncios de obras que trarão progresso no "engordamento" de praias, na especulação imobiliária global quer à beira mar quer no interior, o desmatamento, os aterros, canalização de rios e na surdina o lobby internacional para a liberação da mineração "sustentável" do fundo do mar. A Noruega já liberou a mineração em parte do Ártico e a pequena Nauru quem diria está sendo usada como testa de ferro para a liberação desta "salgemização" global. Vai ser o fim da picada e motivos para mais conflitos!
Assista esta vídeo-aula para entender o afundamento (colapsamento / rebaixamento) de Maceió
Nota:
Este texto foi escrito longe de Alagoas para pessoas que não estão em Alagoas. Assim rogo aos conterrâneos que perdoem qualquer imbecilidade inevitável. São memórias de infância assim não possuem necessidade de ter qualquer rigor científico, jornalístico ou acadêmico. Mas tem muito coração. Os lugares que cito são parte de mim. Faltei mencionar a Levada, a Vila Kennedy, a Coreia, o Trapiche e o Pontal da Barra. Da para ver que sou mais Lagoa do que mar. Obrigado e saudações
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