Levei o chá pessoalmente. Ela adorou, agradeceu e melhorou. Assinei a comanda. Muita gente desconfiou das minhas intenções e lembrou que hóspedes não era, para o meu bico. Confesso que eu estava apaixonado pela minha ciiente de Buenos Aires.
Outro cliente, desta vez um homem para que elimine-se qualquer dúvida, se chamava Earl Boden, um capitão de navio, de nacionalidade hondurenha e que apesar disso não falava espanhol.
Eu estava no meu intervalo, quando a chefia me chamou para atendê-lo porque não havia ninguém que falasse inglês naquele momento ou que entendesse o inglês caribenho do Mr Boden. Ele preencheu a ficha, entreguei-lhe a chave e o levei ao apartamento. O elevador era daqueles que só era dirigido por um ascensorista. Eu era ascensorista também além de também atender à mesa telefônica à noite (PABX) quando entrava chamada.
Ele me disse que precisava sair cedo para pegar o avião da manhã para Recife. Ele contou que estava em viagem de trabalho. Ele deveria ter assumido o comando de um navio ancorado no Recife mas como o voo com tantas escalas tinha sido longo, ele dormiu e só se acordou com avião partindo para Maceió. Mais tarde o Sr. Bodem desceu, veio à recepção e conversamos um pouco mais. Eu queria saber como um nativo de Honduras é nativo do inglês.
Daí ele deu uma aula sobre a costa caribenha de Honduras e a existência de comumidades na Costa de negros de língua inglesa e sobre uma ilha hondurenha chamada Roatan onde a maioria da população fala inglês (ou falava).
Náufragos no hotel
En certa ocasião, no turno da madrugada, escutei apitos insistentes de um navio no porto. Era um sinal de SOS. O hotel não era tão perto do porto mas o mar ficava no final ou começo da rua.
O Hotel estava com boa lotação. Só havia dois apartamentos livres. O chamado de SOS do navio parou. Pensei que estivesse tudo resolvido. Mas por volta das 2h da manhã chegam veículos do Corpo de Bombeiros, não eram caminhões de incêndio, eram mais carros oficiais do tipo de transporte. O oficial me pede gentilmente mas dando ordem para arranjar apartamentos para 15 pessoas. Argumentei que não havia. Só tinha dois duplos.
O oficial disse que eu me virasse porque eles poderiam ficar até na receção. O meu companheiro de recepção queria lavar a mão e sair fora.
Pedi para ver a galera. Eram 15 "náufragos", 14 gregos e um palestino com algum documento egípcio chamado Mike Afifi, residente na Itália. Conversei com o Afifi, definitavamente o líder, que me disse que eles tinham dinheiro para pagar, que não precisava de luxo, que podiam dormir até no chão. Eles só precisavam de aconchego, lençóis quentes porque todos estavam com frio e pelo menos dois precisariam de cuidados médicos na manhã seguinte.
Enquanto conversávamos, a solução se apresentou à minha cabeça. Eu tenho dois quartos. Posso tirar as camas e colocar colchões. Aceitam? Daí corri para a recepção e liguei para o dono do hotel, o português Carlos da Silva Nogueira avisando que eu iria fazer essa operação e que os "náufragos" tinham dinheiro e queria instrução sobre como deveria cobrar de maneira que tivessem direito ao café-da manhã. Instruído pelo Sr. Nogueira sobre o café-da-manhã e liberado, executei a ação.
O Mike falava um grego fantástico e fez que com em meia hora, todos estivessem nos quartos. Todos de cueca, roupa secando onde era possível, e mais interessante, dinheiro em dólar e libras esterlinas secando nos espaços vazios do quarto.
O dono do hotel veio excepcionalmente cedo para tomar cafe-da-manhã e ver o estrago nas instalações. Os meus 15 hóspedes desceram super bem comportados, cada um vestido como pôde, tomaram café e seguiram, para um lugar combinado, onde "liderei" uma curta expedição até uma loja de roupa popular que por casualidade pertencia a um grego. Voltamos ao hotel todos bem vestidos e prontos para várias cessões de colocar as coisas em pratos limpos.
Os nossos hóspedes naufragaram na tentativa de chegar à terra, escondidos, secretamente antes do navio ter realmente aportado. O navio estava fundeado - quer dizer 'ESTACIONADO" em alto mar que no caso do porto de Maceio nem parece ser tão "alto assim". Colocaram um daqueles barcos que o navio carrega como segurança, superlotaram o barco e partiram em direção à Praia da Avenida. O mar estava agitado, o barco virou e eles só se salvaram porque eram marinheiros. Daí o pedido de SOS, e a comumincação às autoridades sobre o ocorrido.
A primeira visita oficial da manhã foi da Polícia Federal. Lembremos que o ano era 1975, pode ser um ano a mais ou menos, e o presidente da República era o general Ernesto Geisel. Os agentes queriam saber quem autorizou a hospedagem? Eu expliquei que meu trabalho era hospedar. E que os bombeiros trouxeram os hóspedes vítimas e me mandaram hospedar. Lembrei que a obrigação do hotel é receber, hospedar e dar conforto ao hóspede especialmente em caso de emergência humanitária.
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Navio MS Master Dáskalos (IMO 5228516) carga geral, construído em 1959 Fem Riejeka, Croácia, para a Grécia. Desmontado em Kaoshiung, Taiwan 1982. Fonte foto ShipSpotting |
Em seguida chegaram o agente do navio da Agência Wilson Sons, um oficial do navio e uma equipe médica que tinha convênio com a agência. Até então eu nem sabia que existia agente de navio. A partir daí o grupo do que nesse momento já eram os meus hóspedes e eu já estava comprando todas a brigas para defendê-los, começou a ser dividido.
Quatro foram internados entre eles o Mike Afifi, um rapaz de uns 22 anos chamado Stávros Polyzópoulos. Stávros sigifica Cruz. Não lembro do nome dos outros dois porque a internação deles foi curta.
O Stávros ficou uns 15 dias e depois da alta, foi levado para Recife de onde voou para a Europa. Mike Afifi ficou mais de um mês tempo que aproveitou para ficar bom e comprar todas as brigas possíveis com a agência de navegação e o capitão. Desde o primeiro dia de internação, eu acompanhava os marujos no hospital e logo se incorporaram outros alagoanos voluntários. Destaco o José Costa e a Alice Mantovani.
Tudo pelo Mike
Como o Mike era líder, o capitão o despediu. Por contrato, além da recisão, o marinheiro receberia uma passagem aérea para o país de origem. O Mike Afifi considerava que o país de origem seria a Itália onde fora contratado. Mas o apitão queria mandá-lo para o Egito onde ele residira como refugiado. Esta quebra-de-braço era perigosa porque ele teria perdido o direito de residência após sair do país e possivelmente seria preso para futura deportação já que a vida de palestimo não era fácil naquela época e continua não sendo.
Como o Mike iria perder de qualquer maneira, eu, à revelia do hotel e já por conta própria, fui à Agência Central dos Correios e enviei um telegrama ao Presidente Ernesto Geisel pedindo ajuda e contando a situação do Mike Afifi. Para suprersa de todos, um pouco antes do prazo do embarque forçado do Mike, chegou uma ordem superior, ninguém sabe de quem, dizendo que o estrangeiro fosse enviado para o país que ele quizesse e que a situação fosse resolvida imediatamente. Foi uma experiência inesquecível. Obrigado presidente!
Assim no dia combinado, o Mike foi escoltado pela Polícia Federal para o Aerporto Internacional dos Guararapes de onde embarcou para Roma com destino a Pescara na Itália. Me correspondi com Mike e Stávros por um bom tempo depois. Continuei no Hotel Beiriz por um tempo. Até hoje agradeço a oportunidade dada pelo proprietário do Hotel, o Senhor Carlos da Silva Nogueira.
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Era uma felicidade colar o sticker do hotel na maleta dos hóspedes. Era um ritual (Flickr) |
Nota
O Hotel Beiriz funcionou entre 1958 e 1990 na Rua João Pessoa, nº 290, Maceió como uma iniciativa do empresário português Carlos da Silva Nogueira (In Memoriam). A tradição hoteleira foi continuada por sua filha Mariza e o esposo, o médico Ismar Malta Gatto com a Rede Brisa de Hotéis: Brisa Praia, Brisa Jatiúca e Brisa Tower
. Informações sobre a hotelaria de Maceió no período pesquisada no trabalho acadêmico de Juliana Costa Melo da UFAL