terça-feira, 3 de setembro de 2024

Como os Mbya Guarani se reinventaram após serem expulsos da Ilha Yacyretá?

Foi-lhes tirada a ilha paradisíaca, mas não o espírito de luta e de reafirmação da sua identidade como povo indígena Mbya Guarani. Esta é a história dos membros da comunidade Pindó, em San Cosme y Damián, Itapúa, narrada por um de seus principais protagonistas, o poeta, escritor, professor e jornalista indígena Brigido Bogado, fundador da primeira escola indígena da região*


Professor Brigido Bogado sob uma foto que lhe rende homenagem na escola que ele fundou. Foto de Desirée Esquivel co-fundadora do El Otro País 


Por Brigido Bogado da comunidade Mbya Pindó, 
San Cosme y Damián, Itapúa, Paraguai

Era extensa a ilha Jasy retã, na região de Itapúa, onde hoje fica a grande hidrelétrica do mesmo nome, margeada pelo majestoso, pacífico e às vezes terrível rio Paraná. Lá, o povo indígena Mbya Guarani vivia pacificamente e sem muitas preocupações.

O rio Paraná oferecia peixes abundantes e variados. A densa selva que então existia forneceu seus frutos, sua rica fauna, os remédios necessários para equilibrar a alma e o corpo, porque como diziam os opygu'a (líderes religiosos), as doenças vêm nos alertar sobre a falta de harmonia, do desequilíbrio entre a alma e o corpo.

A ilha Jasy retã (ou Yacyretá, como se escreve oficialmente, mantendo a antiga grafia do guarani, que significa 'Terra da Lua') era como a Yvy Mara'e'y, a mítica Terra sem Mal, para os habitantes Mbya , aqueles que andavam nus e também seminus, porque na mente e na alma dos Mbya não havia maldade, não havia malícia ou ideia pecaminosa de andar sem roupa. Para nós, mostrar o corpo é algo natural. O corpo tem um propósito específico, reproduzir e permitir que as gerações continuem.

Sim, às vezes você podia ouvir o mbokapu (barulho de armas), música alta, talvez comemorando um aniversário. Foi exatamente isso que se percebeu naquela época, senhores. 


80% da Ilha foi inundado. Foto Museu de História Natural do Paraguai
 (Parte do que restou são as Dunas de San Cosme y San Damián) 

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O anúncio de uma grande inundação

No grande teko'a eram realizados os ritos, no opy (recinto sagrado) liderado pelos yvyra'ija (líderes religiosos) e toda a comunidade comparecia. Este rito foi realizado no início da primavera, época em que a Mãe Natureza se reinicia em todos os aspectos.

Os líderes religiosos pediram esclarecimento e prenunciaram o que poderia acontecer. E justamente num desses ritos anunciaram que as águas do rio Paraná subiriam muito e inundariam tudo; mas não como quase sempre acontecia, que as águas subiam e depois baxavam. O anúncio dizia que desta vez a água não baixaria mais, a inundação seria permanente e nós, Mbya, teríamos que procurar outros lugares para viver.


O anúncio feito durante aqueles ritos, segundo os líderes religiosos, falava que haveria um grande estrondo nas proximidades, como se enormes raios do céu caíssem sobre as pedras, as pedras saltassem no ar e o local seria completamente e permanentemente modificado.

E foi exatamente assim. Depois de um tempo desses anúncios, vieram as enchentes, a água do rio Paraná transbordou sobre nossas terras e não recuou. As grandes explosões ocorreram e os Mbya fugiram das águas o melhor que puderam, com nossos animais, nossas canoas e outros ajudados por alguns Juru'a (não indígena), que se solidarizaram com eles.

As obras da grande barragem começaram. Em 1973, foi assinado em Assunção o Tratado de Yacyretá, para a construção do grande projeto hidrelétrico. De acordo com as leis, deveria ter sido feito um trabalho prévio com os habitantes originários da ilha, para proceder a sua  transferência, mas tal coisa nunca aconteceu com os Mbya. Se aconteceu com muitos não indígenas, os Juru'a, que sabendo o que iria acontecer, construíram casas precárias, fizeram plantações e criaram alguns animais domésticos, para depois serem indenizados, como se fossem os antigos habitantes da ilha.

Nada disso aconteceu com os Mbya. Os membros do meu povo tiveram que deixar a ilha à força. Fomos expulsos. Algumas famílias mudaram-se para terras argentinas, onde também havia alguns colonos Mbya. Outros se estabeleceram nos arredores da cidade de Ayolas. Outras famílias partiram para San Ignacio, Santa María, San Juan de Misiones. Outros emigraram para a zona do alto Paraná e Itapúa, onde ainda existiam montanhas e territórios virgens, todos de influência Mbya. Suas rotas eram extensas e cobriam grandes áreas.

Ajuda solidária

Na década de 1980, após o início da construção da barragem, algumas pessoas se interessaram pela difícil situação de abandono em que viviam as famílias Mbya perto da cidade de Ayolas, Misiones e outros locais próximos da barragem.

Muitos dos que foram expulsos da Ilha de Jacyretá sobreviveram por conta própria, em situações muito precárias, sem ter moradia própria. Esta realidade chamou a atenção dos membros da Equipe Nacional de Missões, da Conferência Episcopal Paraguaia (CEP), organização que vinha trabalhando na assistência aos povos indígenas.

Desta forma, com autorização do então bispo de Encarnação, Dom Juan Bockwinkel, os Mbya afetados pela construção da barragem passaram a trabalhar com o coordenador da equipe, o padre Wayne Robins, a advogada Mirna Vázquez, já falecida, que era especialista em direito indígena e outras pessoas.

Da região de Itapúa, Crescencia Carísimo e o autor desta nota, Brigido Bogado, juntaram-se à equipe.

A primeira coisa que fizemos foi um censo para registar todas as famílias e pessoas Mbya que estavam na região, expulsas das suas terras e abandonadas pelas autoridades.

Muitas reuniões foram realizadas com os líderes. Muitos deles não queriam saber nada sobre como lidar com a papelada, pois diziam, a partir de sua visão de indígenas: “Ñande Ru kuery (nossos deuses) nos colocaram nestas terras para viver e nos desenvolver livremente”. Nada mais era necessário para eles.

Depois de muitas conversas, um grupo concordou em realizar os procedimentos que os membros da Equipe de Missões aconselharam a fazer junto às autoridades da Entidade Binacional Yacyretá, responsável pela construção da barragem. Foi um longo processo para eles reconhecerem que havia famílias Mbya que viviam na ilha antes da construção da hidrelétrica, que nunca foram levadas em conta, que foram expulsas arbitrariamente.

Por fim, reconheceram oficialmente 28 famílias como ex-habitantes. A EBY concordou em comprar cerca de 425 hectares de terras de dois proprietários que concordaram em vender, para localizar as nossas famílias, nos arredores da cidade de San Cosme y Damián.

Em Outubro de 1989, poucos meses após a derrubada do governo do General Stroessner, entramos nas nossas novas terras. Decidimos dar à nossa nascente comunidade o nome de Pindó, que corresponde a uma palmeira tradicional da região (nome científico: Syagrus romanzoffiana), que para os Mbya é uma planta muito especial, porque utilizamos todas as suas partes, o tronco, o folhas, os frutos, tanto como alimento como para nossas construções, bem como para fabricar implementos, utensílios, artesanato, etc.

O presidente que derrubou o ditador Stroessner, o general Andrés Rodríguez, veio visitar a nossa comunidade e nos deu o título de propriedade dos 425 hectares, com o qual conseguimos garantir que não poderiam mais nos tirar essas terras. Rodríguez também inaugurou a escolinha indígena que construímos e da qual fui o principal divulgador e o primeiro professor indígena, tanto que no início funcionou na minha casa, onde dava aula para as crianças, até que conseguimos construir uma sala de aula. Nossa escola, que cresceu muito nesse tempo, é a primeira escola indígena que começou a funcionar em todo o Departamento de Itapúa.

Grupo de Teatro Yvy Mara'e'y  da Comunidade Pindó

Uma comunidade modelo

Depois de ficarmos muito tempo sem terra, abandonados, morando de qualquer forma em qualquer lugar, finalmente tínhamos um novo lugar para construir nossa comunidade como povo indígena. Havíamos sido expulsos da nossa ilha paradisíaca, mas tínhamos novamente um lugar que era legalmente nosso, não tão grande quanto a nossa cultura exige, mas importante para seguirmos em frente.

A Comunidade Pindó está localizada a 368 quilômetros ao sul da capital Assunção, a 78 quilômetros de Encarnación, capital do departamento de Itapúa e a 18 quilômetros das cidades de San Cosme e San Damián. A estrada pavimentada que leva a San Cosme passa pela nossa comunidade.


Atualmente são 46 famílias morando em Pindó. Temos serviço de electricidade, pagamos o consumo, embora acreditemos que deveria ser gratuito para os Mbya, como reparação por nos terem expulsado da nossa casa, para a construção da barragem.

Ao lado da estrada que leva a San Cosme y Damián

Pindó vem se organizando, buscando ser uma comunidade indígena modelo no resgate de nossas tradições ancestrais, embora ainda precisemos realizar muitas conquistas. Nossas famílias se dedicam à agricultura e aos trabalhos esporádicos, já que os indígenas nunca recebem o que está estipulado na lei. 

Procuramos oferecer alternativas ao turismo, principalmente com o artesanato que nossos avós nos ensinaram. Hoje contamos com artesãos hábeis de nossa comunidade que fazem lindos trabalhos de escultura em madeira kurupika'y, cedro peterevy, folhas de pindó, além das linhas de cestaria Mbya com tiras de takuarembo, ñandypa e guembe. As amostras esculpidas em pedaços de madeira recriam figuras de diversos animais e outros objetos, que ficam expostos em barracas de vendas ao longo do percurso, bem como em feiras periódicas em locais turísticos.

Um fator muito apreciado é que os meninos e meninas de Pindó formaram um Coral e um Grupo de Dança, conhecido como Teko Marãe'y, que tem feito apresentações bem sucedidas em feiras internacionais do livro, festivais, eventos acadêmicos e turísticos.

Em nossa escola aprendemos desde a pré-escola até o primeiro ano, com professores indígenas e não indígenas. Temos muitos jovens, meninas e meninos, que estudam na universidade e trabalham no comércio. No meu caso particular, além de poeta e escritor, professor, membro da Sociedade Paraguaia de Escritores (SEP), publicando livros, pude concluir meus estudos de jornalismo na Universidade Católica de Encarnación, percorrendo os 78 quilômetros até lá e depois retornando à, comunidade, no meio da noite. Dessa forma sacrificada, em 2021 me graduei com honras, tornando-me o primeiro indígena Mbya Guarani a ser formado em Ciências da Comunicação, com ênfase em Jornalismo. Hoje me alegra fazer parte da equipe de jornalismo do El Otro País como colaborador e assessor nas questões indígenas.

O artesanato é um importante modo de preservar a cultura e ajudar economicamente 



Podemos afirmar que a qualidade de vida que os habitantes originários da Ilha Jasy Retã tinham, antes da construção da barragem, infelizmente ficou para trás, pois a extensão de terra onde hoje está localizada a nossa Comunidade já não possui as riquezas naturais que costumavam ser abundantes, como os peixes variados, os frutos abundantes das montanhas, a fauna variada e o céu imenso respirando ar de liberdade, mas mesmo assim nos organizamos para sustentar uma comunidade que busca resistir às mudanças culturais e seguir em frente, mantendo viver a nossa identidade Mbya, adaptando-nos aos novos tempos, mas sem esquecer o que os nossos antepassados ​​nos deixaram. 

É o espírito das soluções com as quais procuramos responder à situação dos povos indígenas, que continua crítica em diversas regiões do país.

Repórter do Canal 8 com o professor e jornalista mbya Brigido Bogado e a artesã Irma Cabral com uma de suas peças



Notas:
* Abertura de Andrés Colmán Gutiérrez
Com exceção da primeira foto da jornalista Desirée Esquivel e a foto da Ilha, as demais fotos são do acervo no Facebook do professor Brigido Bogado. San Cosme y Damián é um município do Departament de Itapúa, Paraguai que abriga a antiga Missão Jesuita de San Cosme y San Damián onde a igreja principal funciona até hoje. A missão é uma das sete altamente preservadas que formam o patrimônio cultural do Paraguai. Duas são patrimônio mundial / UNESCO  
Postado originalmente em 29 de abril de 2022 - Artigo original




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