segunda-feira, 12 de junho de 2023

Uma homenagem às vítimas, amigos e familiares do acidente da antiga TABA em Tabatinga, Amazonas


Francy Xavier
Filha de Francisco Xavier Pereira
In Memoriam 

 

"Na época que aconteceu o acidente a minha mãe ficou grávida de mim ... essa  companhia aérea tirou todos nossos sonhos de ter pai presente nas nossas vidas, nem sequer tive a oportunidade de conhecer meu pai" - Francy Xavier



Recorte amarelado de jornal enviado pela filha de Francisco Xavier Pereira, o sétimo nome na lista de 22 passageiros de Eirunepé

Por Jackson Lima*

Este texto é uma homenagem às vítimas e familiares do acidente do avião da TABA (Transportes Aéreos da Bacia Amazônica), Modelo Hirondelle prefixo PT-LBV na manhã de sábado, dia 12 de junho de 1982.  

O voo tinha partido de Eirunepé, uma pequena cidade do interior do Amazonas com destino a Manaus via Tabatinga e Tefé. Havia 44 pessoas abordo. Todos faleceram. Eu poderia ter sido a vítima número 45 caso tivesse chegado dentro do meu horário para abrir a banca (box) de um amigo que vendia produtos amazônicos entre eles pó e bastão de guaraná. Eu aproveitava e vendia também excursões para algum turista estrangeiro. Neste dia cheguei muito atrasado. Embora o voo de Eirunepé não trouxesse turistas estrangeiros eu mantinha o ritual.   

O dia estava claro mas o céu estava coberto com nuvens baixas como se fosse cerração. Sem dúvida quem estivesse abordo do avião não veria o chão. Eu morava na casa do amigo Saburo Ueda, dono do box,  na área do INCRA próximo ao Igarapé Urumutum. Eu ia a pé de casa até o aeroporto. Uma boa distância. Tenho vaga lembrança que ouvi o ronco do avião voando "dentro das nuvens" e dando voltas a partir do momento que entrei na Avenida da Amizade que ligava na época o Aeroporto de Tabatinga com o Aeroporto de Letícia, Colômbia. 

Fiquei agitado e apressei os passos para não chegar muito tarde no aeroporto. Continuei escutando o avião fazer longas voltas e me parecia que cada vez mais baixo. Antes de chegar à área militar, sede do 8º BIS (Batalhão de Infantaria de Selva) já passado o Hospital de Guarnição na altura do rio Brilhante, alguma coisa me fez ter um pressentimento ruim. Foi quando passou um caminhão do Bombeiros Voluntários de Letícia, Colômbia. Não me chamou a atenção porque era um caminhão pipa.    

Minutos depois já no trecho final da caminhada passa um segundo caminhão do Corpo de Bombeiros de Letícia. Vi que em pé, uniformizados e  agarrados naquele suporte para carregar os profissionais estavam o amigo Alberto Rojas Lesmes, o KAPAX e a Diva Smith que mais tarde chegou a ser minha chefe em uma empresa de turismo de Letícia. O Kapax gritou e me mandou correr. Comecei a correr. Quando cheguei na última curva já para virar em direção ao estacionamento do Aeroporto avistei a pior visão que tinha visto ate então em minha curta vida. Eu ainda não tinha 30 anos. O Kapax me recrutou na hora para ajudar no resgate. 

O fogo já tinha sido apagado pelo primeiro caminhão e a equipe do Aeroporto que também tinha um caminhão.  Só saia uma fumaça de várias partes da fuselagem. Sofro uma espécie de amnésia sobre o que vi, quanto vi e que senti no processo de salvar. Só não esqueci uma criança que achei e fiz esforço de tirá-lo dos escombros. Ele não parecia ter se machucado e eu senti muita alegria quando gritei pedindo ajuda dizendo que havia um sobrevivente. O corpo estava inteiro menos a parte de trás da cabeça. Só notei isso quando passei o menino para um bombeiro que não sei se era brasileiro ou colombiano, do Exército Brasileiro, da defesa Civil Colombiana ou da Infraero. A essa hora estava aumentando o número de ajudantes. Passei mal e fui retirado do ambiente para recuperar dentro do aeroporto. 

Foi nesse momento que percebi que o meu box (o balcão),  aqueles oficialmente concessionado pela Infraero, havia sido destruído. Um pneu do avião se soltou, atravessou a parede do edifício do aeroporto, destruiu a minha banca, atravessou o estreito saguão, destruiu o balcão do Correio Aéreo Nacional (CAN), atravessou mais uma parede, atravessou a pista e foi parar no gramado no lado exterior da pista. Só aí entendi que meu atraso me salvou. 

Depois de recuperar a equipe me deu tarefas mais leves como fotografar e documentar a atividade. Um filme foi entregue às autoridades brasileiras e outro foi entregue a um piloto da Cruzeiro do Sul que fazia a rota Iquitos - Manuas via Tabatinga e Tefé. A partir daí o sol brilhou mas como se estivesse sob a influência de um eclipse. Um dia triste. Quando um golpe é muito duro, as pessoas parecem que não digerem, não falam, os tabatinguenses não falavam sobre o assunto. Não acompanhei o trabalho oficial mais tarde e o resgate já a cargo da Força Aérea. E não sei como voltei para casa.    

Algumas Fotos e contexto               



Este caminhão tanque chegou primeiro. Pode-se ler nele BOMBEROS em espanhol. Avião caiu na área de estacionamento  

Notícia no Estado de São Paulo do dia 13 de junho de 1982. Um dia depois do acidente


Matéria no Jornal do Brasil do dia 14 de junho já traz a manchete: Comandante do Hirondelle é acusado de causar o acidente 



Eirunepé 
Umas palavras para o grande público do Sul do Brasil sobre a cidade amazonense que tem o belo nome de Eirunepé. A cidade fica às margens do rio Juruá a mais de 1.000 km de Manaus. Não há estradas. O transporte de cargas e passageiros até aí só por rio ou aéreo. Hoje há dois voos semanais operados pela AZUL. Para os leitores da fronteira Brasil-Paraguai acrescento que a palavra Eirunepé é tupi e significa "Caminho do Mel Escuro". Em guarani seria "Eirahũrape"  (Eira+ mel, hũ=escuro e tape (rape) caminho. A viagem de Manaus a Eirunepé de barco leva 21 dias, subindo o rio. O rio Juruá tem muitas comunidades. A origem do povoamento tem a ver com a ciclo da borracha.   

Tabatinga
Em 1982, Tabatinga era uma Colônia Militar chamada Marco-Tabatinga. Marco era o bairro civil a partir dos marcos fronteiriços até a área do 8º BIS. O município só foi criado em 1983 quando toda a área assumiu o nome de Tabatinga. Embora o município seja recente, o Posto Militar que deu origem à atual Tabatinga foi fundado em 1776. Até 1759 quando os jesuítas foram expulsos das terras de Portugal no local havia uma aldeia fundada pelos jesuítas.     

O amigo KAPAX

Estátua de Bronze / Monumento ao KAPAX em Letícia


O nome real do KAPAX é Alberto Rojas Lesmes. Ele nasceu às marges do rio Putumayo, na amazônia colombiana. O rio Putumayo é conhecido no Brasil como rio Içá. Ela ganhou o título de KAPAX em 1976 quando se jogou na água no Rio Madalena na cidade de Neiva, Colômbia para nadar sem proteção nenhuma até o caribe, onde o rio desemboca. Foram mais de um mês de natação com a imprensa seguindo. Virou o Tarzan da Amazônia, o herói colombiano. Foi ele que como representante oficial da Defesa Civil colombiana participou do esforço de resgate do avião da TABA em Tabatinga. Foi ele quem gritou me chamando para participar. Eu era fã incondicional dele e me considerava discípulo. Éramos também parceiros, porque eu traduzia para ele quando necessário para audiências em inglês, português, italiano o que aparecesse na frente.Queria ser como ele. Menos nessa área de nadar. Mas queria saber lidar com sucuriju ou sucuri. KAPAX não precisou morrer para ganhar uma estátua de bronze próximo ao aeroporto de Letícia. 
Não me dei bem nessa área de mexer com sucuri. Duas vezes ele me repreendeu seriamente. Na primeira quando uma anaconda quase me matou e a outra quando um turista foi mordido. Mesmo sendo herói do país que sofria com tantas atrocidades, KAPAX era humilde e voluntário. Foi nesta condição que ele liderou o trabalho das equipes colombianas da Cruz Roja, Bomberos e Defesa Civil. Hoje já com a idade avançada escutou dizer que ele anda triste. Mas nesta homenagem às vítimas, resgate, profissionais e voluntários que ajudaram na tentativa frustrada de resgatar pessoas com vida, faço questão de lembrar o KAPAX. Estivemos juntos em outras situações e em outro desastre aéreo, desta vez no lado colombiano, mas sobre isso falarei em agosto em outra homenagem. 

Finalizando
O desastre de Tabatinga só não foi considerado o pior desastre aéreo do Brasil, porque uma semana antes houve a queda de um avião que fazia o voo 168 da Vasp com destino a Fortaleza matando os 137 passageiros abordo. O acidente marcou a alma cearense assim como o voo da TABA deixou feridas abertas no coração e na memória dos que viveram a tragédia. No Ceará o jornal O Povo produziu um longa metragem sobre o acidente: "Voo 168: A tragédia da Aratanha". Ficamos devendo uma homenagem oficial maior no Amazonas. Agradeço a Francy Xavier pelas informações e saúdo a ela e a família com esta homenagem.

* Jackson Lima, sou jornalista, resido em Foz do Iguaçu, Paraná, fronteira Brasil,Argentina e Paraguai. Em Tabatinga, publiquei o primeiro jornal da cidade, após a emancipação de Benjamin Constant. Foi de curta duração o jornal e se chamou Gazeta de Tabatinga
  

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