quarta-feira, 25 de março de 2020

Os grandes viajantes alemães no Brasil. Legados e laços deixados: conectando pelo turismo

Atenção! Texto longo. 
Não precisa ler tudo de uma vez!

A tartaruga matamatá coletada por Spix há 200 anos
O Dr Juan José Silva Haad, médico colombiano, clínico, cirurgião e diretor-geral do Hospital Regional de Letícia, Amazonas, Colômbia, atual Hospital San Rafael, entendia tudo sobre veneno de cobras. Na época em que eu passei uns dias com ele fotografando cobras e gente coletando veneno de cobras, para um livro seu, ele já tinha salvo mais de mil pessoas mordidas por diferentes espécies de cobras. “Se eu um dia for mordido por cobra, eu quero está perto do senhor”, eu disse uma vez a ele enquanto eu colocava uma coral anestesiada (não literalmente) de volta no abrigo dela.


Logo depois um especialista americano, cientista aposentado, Dr. Leroy King, veio à Letícia para conhecer o Dr. Silva e ajudar na identificação de alguns exemplares de espécies e subespécies de cobras preservadas em clorofórmio. Um dos métodos do Dr. King era contar quantas escamas as cobras tinham e dizer se eram dorsais, laterais ou occipitais. Ele me deu uma cobra para que eu contasse as escamas delas e uma prancheta para que eu anotasse. Mas não consegui terminar a tarefa porque uma hora depois me encontraram desmaiado no chão. Não aguentei o cheiro. Mas foi em conversas com a equipe, depois, que escutei falar de uma espécie de cobra chamada Spix spix surinamensis, ou pelo menos isso foi o que ouvi. “Você tem 20 minutos para receber ajuda médica”, me disseram informativamente conseguindo assustar-me para o resto da vida. Até aqui venho agorinha com as informações sobre o Dr. Silva e o seu trabalho. 

Passo a pensar em Spix, o cientista que dá o nome à cobra, seja lá qual for o nome.  Johan Baptist Ritter von Spix, foi um biólogo alemão que produziu uma obra tão grande sobre a flora e fauna do Brasil que mesmo hoje deveria deixar os brasileiros com inveja. Ele comandou uma  expedição ao Brasil que ficou conhecida como Missão Austríaca (1817 - 1820) junto com outro grande alemão chamado von Martius. Três répteis foram descritos e nomeados por ele. Duas cobras e um cágado. As cobras são a Chironius spixii, e a Micrurus spixii - uma cobra coral que mede entre 1 metro e um metro e 20. Um dos nomes dela em inglês é "aquatic coral snake", ou cobra coral aquática, Na realidade semiaquática. Quem for biólogo ou interessado e quiser saber sobre as micrurus (corais) da Amazônia podem conferir aqui e ter uma ideia de "venenologia" aqui nesta dissertação da UNESC. 

O cágado se chama Acanthochelys spixii. Mas daí acabo de me meter em uma confusão. Nunca descobri nada sobre a cobra Spix spix com este nome. O território ligado a nomeação de espécies é muito complexo e eu sem duvida não me meto nele.  A Micrurus spixii seria a Spix surinamensis? Faço-me esta pergunta e estou aberto a receber respostas da comunidade herpetologista. Além das cobras e da tartaruga, o nome de Spix se encontra também no nome científico da Cyanopsitta spixii ou ararinha-azul também chamada Ararinha-azul de Spix. Uma das obras dele, basicamente uma lista de cágados, tartarugas e rãs observadas e descritas por ele ao longo do itinerário de sua viagem pelo Brasil é a lista: Species novae Testudinum et Ranarum, quas in itinere per Brasiliam annis 1817-20 collegit et descripsit. (F.S. Hübschmann, München, pág. 1-53).

A ararinha-azul descoberta e descrita por Spix em matas de galerias, próxima ao rio São Francisco na região de Curuça (BA) foi extinta na natureza. Mas elas estão voltando. As primeiras 52 ararinhas-azuis deverão ser soltas na Natureza no ano que vem (2021). Elas já estariam no Brasil esperando a hora. As ararinhas-azuis de Spixii descobertas por Spix na Bahia foram salvas da extinção na Terra de Spix. Todas nasceram  e foram criadas em um zoológico na Alemanha. O blog aplaude e torce pelo sucesso da reintrodução da ave independente da polêmica (link em inglês) que envolve diferentes atores envolvidos no processo. O roteiro inclui acusações, ciúme, inveja, problema de transparência ou sua falta. Por isso dizer que torcemos para que nada impeça a ararinha de levantar voo. Nem Johan Baptist von Spix e nem a sua ararinha mereciam isso.

Spix viajou no Brasil com outro cientista alemão, Karl Friedrich Philipp von Martius. Os dois viajaram em pé de igualdade. Os dois eram altamente qualificados. Mas por algum motivo, von Martius é mais conhecido no Brasil. Ele é nome de rua no Brasil e tem até um Museu, o Museu von Martius dedicado a ele no Parque Nacional da Serra dos Órgãos (RJ). Em nome da justiça e do respeito há quem sugira que quando houver uma próxima repaginação do museu, ele seja chamado Museu Spix  Martius. Eles viajaram juntos vendo o Brasil com seus olhos especializados e curiosos. Spix via animais, pássaros, mamíferos e répteis e von Martius via as plantas. Ele era botânico. Partiram do Rio de Janeiro e rumaram norte ao longo da costa atravessando o Nordeste especialmente a Caatinga boa parte pelo Rio São Francisco. Da região de Curuçá, prosseguiram juntos até Manaus onde se separaram. Von Martius subiu o Rio Japurá e Spix seguiu o Solimões (que é o mesmo Amazonas) até Tabatinga (Brasil) então na fronteira com o Peru e desde 1934, (após o fim do conflito Colômbia e Peru) fronteira seca Brasil-Colômbia entre as cidades de Tabatinga e Letícia. Por casualidade a poucos quilômetros do consultório do Dr. Silva, o hepertologista dessa região trinacional. Terra da Micrurus spixii e da tartaruga matamatá (Fransenschildkröte na língua de Spix) que tanto impressionou ao cientista. 

Uma palavrinha sobre Tabatinga

Entre 2017 e 2020 estamos vivendo o bicentenário da Missão Austríaca .  Tabatinga, no máximo conhecido como um município novo inclusive por seus moradores, começou como o Forte de São Francisco Xavier de Tabatinga em 1766. Quando Spix passou por lá, a instalação militar e religiosa já tinha 52 anos. Hoje não há vestígios do Forte de São Francisco Xavier de Tabatinga. O motivo, quem é do Alto Solimões sabe: nada é permanente inclusive a terra da região. O Rio Amazonas ou Solimões provoca desmoronamento do barranco que é conhecido como o fenômeno das "terras caídas" (veja reportagem).  Até ganhar sua autonomia nos anos 1983, Tabatinga respondia pelo nome de Colônia Militar de Tabatinga administrada pelo 8º Batalhão de Infantaria de Selva (8º BIS), Batalhão Forte São Francisco Xavier. Até a emancipação a área militar era Tabatinga propriamente dita. E no outro extremo da Colônia Militar ficava o bairro civil chamado Marco, em alusão ao marco de fronteira que demarca o limite Brasil-Colômbia, o primeiro da linha de fronteira Tabatinga-Apaporis. Dedico esta parte tabatinguense desta história de TBT ao então Prefeito da Colônia, na época tenente Luiz Pereira de Lima e ao Capitão Botelho chefe do Aeroporto Internacional de Tabatinga.  
   
Von Martius
Eu me identifico muito com Karl Friedrich Philipp von Martius, sinto conexão com ele, pela sua dedicação e amor às palmeiras. Para mim as palmeiras são o Brasil. O Brasil é Pindorama e Pindorama significa "Terra do Pindó". E pindó é uma palmeira. Depois de suas viagens e de volta à Alemanha, von Martius escreveu livros e tratados como: Nova Genera et Species Plantarum Brasiliensium - Novos Gêneros e Espécies de Plantas Brasilienses (1823–1832, 3 vols.) Icones selectae Plantarum Cryptogamicarum Brasiliensium (1827), Historia naturalis palmarum (1823–1850) em Flora Brasiliensis.  

Um dia von Martius morreu, como todo mundo morre. Na sua sepultura foi afixado uma inscrição escolhida por ele: "In palmis semper virens resurgo" (Na palmeira sempre rejuvenescido ressurjo"). Gostaria de ter permissão para adotar este pensamento no sentido que esta é exatamente a minha vibração em relação às palmeiras brasileiras quer sejam o jerivá, o carandá, o palmito, o catolé, pupunha e centenas de outras. Um dos nomes ou títulos que eu poderia conferir a von Martius seria: " O alemão que entendeu a Terra do Pindó". 

Humboldt

Ainda quero falar de mais três alemães que vieram ao Brasil e fizeram grandes coisas ainda na época das grandes viagens. Me lembro de Alexander von Humboldt. Estou falando a partir de uma perspectiva amazonense e por amazonense me refiro à perspectiva do estado do Amazonas. Humboldt foi muito importante. Ele nunca veio ao Brasil até porque o Brasil não autorizou a entrada dele. Humboldt veio à América do Sul onde desembarcou na cidade venezuelana de Cumaná - uma das mais antigas das Américas - ainda desconhecida para o grande público brasileiro. 

A expedição dele partiu de Cumaná para explorar o rio Orinoco. O rio Orinoco é um rio de personalidade forte. Prova disso é que a região da Bacia do Rio Orinoco é chamada de Orinoquía assim como a região da Bacia Amazônica é "Amazonía", Amazônia. Mas o grande feito de Humboldt em relação à Amazônia foi a comprovação e localização exata da bifurcação de um igarapé que liga o rio Negro ao rio Orinoco. O igarapé se chama Casiquiare. 

O Casiquiare, assim é um igarapé que une a Amazônia à Orinoquia, o sistema do Orinoco com o sistema do Rio Negro afluente do Amazonas.  Um dos meus sonhos na Amazônia era navegar o Casiquiare. Até aqui não deu. A partir daí, Humboldt partiu para os Andes, a Costa Pacífica da América do Sul. Pesquisas recentes mostram que o Casiquiare é um testemunho único da captura de água de uma grande bacia para outra. Isso quando um rio de uma bacia maior rouba água de uma bacia menor.Neste caso, o Casiquiare seria um caso único no mundo.

Quando o Brasil negou a permissão de Humboldt entrar na região rio Negro, já estava em andamento uma tendência do governo brasileiro em proibir as expedições estrangeiras. O governo gostaria de ver expedições brasileiras explorando o Brasil. Esta tendência continuou depois na República. Foi essa ansiedade brasileira que levou muitos anos mais tarde, já nos anos, 30, a decisão do governo de Getulio Vargas investir em e estimular a substituição de expedições estrangeiras para a evitar a exploração não-autorizada de recursos brasileiros. É dessa época a Lei de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil o que resultou mais tarde na criação do sistema que levou à criação de Parques Nacionais sendo o primeiro o PN Itatiaia e segundo o Parque Nacional do Iguaçu. Quem desejar aprofundar esse capítulo da história, pode buscar no Google o artigo "Natureza e ciência na trajetória do botânico Paulo Campos Porto (1914- 1939)" de Ingrid Fonseca Casazza. È um bom começo.   
   
O próximo alemão que me interessa muito, embora não faça parte da família dos cientistas exploradores, é Hermann Otto von Blumenau. Aquele que seria o fundador da colônia alemã que mais tarde se transformaria na bela e atual cidade de Blumenau em Santa Catarina conhecida por seu empreendedorismo como a maior Oktoberfest do Brasil. E por que o senhor Blumenau entra nesta lista de grandes nomes alemães de exploradores, cientistas  e viajantes? O motivo é que Blumenau, quando preparava sua proposta de colonização foi falar com Alexander von Humboldt e se fosse pouco ainda aconselhou-se e pegou informações com von Martius. Mais tarde aprofundaremos as informações sobre o Dr. Blumenau sob a perspectiva dos dois lados da proposta: o alemão e o brasileiro ou vice-versa. Mas para ir adiantado, é admirável o trabalho  da arquiteta Angelina Witt sobre Blumenau e a imigração alemã no Vale do Itajaí em seu ótimo blog.  


Uma pedra memorial em um Parque da cidade Jena 
Por fim, chego a Curt Unckel Nimuendajú. Assim como von Martius entendia da botânica brasileira e Spix da fauna brasileira, Curt Unckel merece o título de "o alemão que mais conhece da antropologia do Brasil: o que significa, os povos indígenas do Brasil. 


Curt Unckel Nimuendajú nasceu na cidade de Jena na Alemanha e morreu não muito longe de Tabatinga, Brasil em um local chamado Santa Rita do Weil parte do município de  São Paulo de Olivença. Ele foi sepultado temporariamente em Santa Rita do Weil e mais tarde teve seus restos mortais trasladados para São Paulo no Cemitério do Redentor em Sumaré. Uma placa em sua terra natal presta-lhe homenagem: "Ao grande pesquisador indigenista e humanista - Curt Unckel Nimuendajú". Nela aparece Jena como cidade natal de Numuendajú e Santa Rita, Brasil, como o local de seu falecimento.  A placa oficial é assinada pela Cidade de Jena.  

Eu sempre escutava falar de alemães que moravam lá. Eu era jovem e tanto me lembro como me encantava com uma garota de olhos azulados que era de lá e morava em Tabatinga com a família. A presença de alemães no começo do século XX no Amazonas sempre foi uma grande curiosidade minha e algo que eu destacava em minhas excursões como guia local. O motivo foi a borracha. A possibilidade de fazer fortunas e até chegar a "barão da borracha". Com a implosão da indústria da borracha foi registrada uma falência generalizada. Os barões sofreram mas puderam voltar a seus países ou entrar em outros negócios. Uma dúzia de sobrenomes alemães ficaram na floresta. Nunca tive a oportunidade de visitar Santa Rita do Weil enquanto morei na região. Agora imagine a minha surpresa em descobrir,  muitos anos depois e já sob o domínio da internet que Nimuendajú, nome apopokuva-guarani adotado após sua naturalização como brasileiro, morreu lá. 

Deixo espaço para uma possível correção sobre os alemães de Santa Rita do Weil. A história dos Alto Solimões é antiga e vem da época em que padres jesuítas como Emanuel Fritz, protegia as terras espanholas (Peru) da expansão portuguesa - uma história que permite um elo com os eventos parecidos na República do Guairá, atual estado Paraná, os Jesuítas e os bandeirantes que podem ser vistas nas famosas ruínas no Paraguai, Argentina e Brasil). Exemplos dessas ruínas são San Ignacio Mini, São Miguel das Missões e o conjunto de ruínas no Paraguai. Todas com status de Patrimônio Mundial. Em Foz do Iguaçu,para quem não tem muito tempo, vale a pena ver o Marco das Três Fronteiras, onde a parte "local" dessa historia é resumida e contada. 

Há rápidas menções sobre a possibilidade de que o primeiro casal alemão em Santa Rita, João de Deus Weil e Catarina Seeligmann tenha chegado em 1886 no Brasil Império. Para quem é de Foz do Iguaçu, basta lembrar que a primeira expedição brasileira à foz do rio Iguaçu (PR, Mnes) ocorreu em 1888, quatro anos depois. 

Porfim, duas cidades na Alemanhã são chamadas Weil:A primeira Weil am Rheine (Weil sobre o Reno) cujo orgulho é ser uma "Tríplice Fronteira" entre Alemanha, Suíça e França e Weil der Stadt, cidade medieval natal do astrônomo e matemático Johannes Kepler.   

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