quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Esmola nos semáforos: não são crianças de nacionalidade paraguaia ou argentina. Foz precisa de uma Casa de Passagem Indígena (CAPAI) 1ª Parte

GDia de Foz do Iguaçu de 07 de fevereiro de 2022

Jackson Lima

As "crianças indígenas" que são vistas nas esquinas de Foz do Iguaçu pedindo dinheiro nos semáforos, não são crianças paraguaias e argentinas como rezam petições do vereador Alex Meyer de Foz do Iguaçu.

Caso sejam indígenas elas são Mbya-Guarani. Não são argentinas, paraguaias ou brasileiras assim como Diego Maradona, José Luiz Chilavert e Xuxa. São quase cidadãos de terceira ou quarta classe nos países onde nasceram e moram. 

São descendentes dos povos tupi-guarani que habitavam todo o Brasil quando os portugueses chegaram. Lembremos que tupi-guarani não é uma tribo é um tronco linguístico ou uma superfamília de línguas composta por pelo menos 10 famílias.

Uma dessas famílias é a família tupi-guarani que tem pelo menos 35 línguas diferentes e vivas. Uma delas é o mbya-guarani, a língua da maioria das crianças em questão. Em nossa região trinacional temos ainda o avá-guarani e o guarani-paraguaio que é língua oficial no Paraguai e no Mercosul.

Os mbya-guarani que vem a Foz de Ciudad del Este, Hernandarias ou outros lugares são descendentes dos guarani que formaram o grosso da mão de obra escrava da indústria da erva-mate entre 1881 e a década de 1930 fazendo a riqueza do Paraná, do Alto Paraná Paraguaio, de Misiones, de Guaíra, de cidades como Curitiba com seus palácios de barões da erva-mate (como este) e Buenos Aires. 

Embora pareça que esses guarani venham do Paraguai e Argentina e invadam o Brasil, a origem deles é traçada de volta no tempo há 5 mil anos com início nas margens do rios Madeira e Aripuanã. Portanto o Guarani é de origem amazônica e expandiu na direção da boca do rio Amazonas e de lá seguindo a Costa brasileira, com outros grupos seguindo os grandes rios na direção do Sul do Brasil, Paraguai, Argentina. Eles são pelo menos 4.500 anos mais velhos que o Brasil.

Antes de 1881 eles andavam pelas florestas de toda a região em suas rotas migratórias inspiradas pela procura de um lugar sem mal, sem problemas que em guarani se chama "yvy marã'ey" durante pelo menos 122 anos que é o período de tempo entre a expulsão dos jesuítas das terras de Portugal (Brasil).

Antes da expulsão, os guarani viveram sob a proposta de evangelização dos jesuítas que incluía experimentos econômicos, sociais e culturais montados em locais estratégicos desde o Piquiri, Ivaí até as Cataratas do Iguaçu que hoje a gente lembra vagamente como Missões Jesuíticas. Foram 148 anos de dominação jesuíta.

Quando os jesuítas fundaram as primeiras 11 missões em terras do que hoje é Paraná, a paz só durou 18 anos. Logo chegaram os bandeirantes que atacavam as aldeias, matavam e levavam os indígenas  como escravos para as plantações de São Paulo.

Isso fez com que os antepassados dessas crianças do semáforo tivessem que começar a fugir dos bandeirantes em direção ao lado espanhol. Só em uma ocasião 20 mil índios fugiram das missões em direção às terras espanholas com milhares de mortes ao longo do caminho, muitas delas nos Saltos das Sete Quedas.  

Réplica de uma missão jesuítica em um dos ambientes do Complexo Turístico Marco das Três Fronteiras

Por isso hoje San Ignacio Mini, Santa Ana, Nossa Senhora de Loreto do Pirapó  fundados no Paraná se encontrem na Argentina. O Marco das Três Fronteiras tenta contar um pouco dessa história das missões.  

Quando os jesuítas foram embora, deixaram para trás toda a riqueza acumulada junto com as obras culturais e artísticas. Os índios voltaram para se esconder no mato. Um levantamento feito pelos jesuítas na época da expulsão revelou, resumindo, que as propriedades das missões jesuíticas deixadas para trás possuíam 769,869 cabeças de gado divididos em várias categorias segundo o manejo. Esses números não incluem duas das maiores propriedades a de Yapeyu, Corrientes, Argentina e a de São Miguel das Missões (RS).  

Tinham ainda 159,568 cabeças de equinos ou seja cavalos, éguas e burros além de 30.144 ovelhas e cabras. As terras e animais abandonados foram desapropriadas pelos governos e repassadas para os agraciados do poder. Esse foi o começo da pecuária nas terras das missões após o fim das missões. Se isso não se chama roubo, não sei que nome dar.

Hoje após 356 anos de contato com os povos não índios, as terras escassearam. Para muitos desse povo só sobraram os semáforos, as esquinas, as calçadas das cidades modernas.

A solução desse caso não passa por pedidos como o do vereador iguaçuense que clamam por "mecanismos de segurança adotados para controlar a entrada de migrantes do Paraguai e da Argentina no Município" segundo os requerimentos nº 10/2022 e nº 11/2022 ou, como corroborou a vereadora Anice Gazzaoui, a quem dedico muito carinho e respeito, destacando "a facilidade do trânsito dessas crianças de um país ao outro" e lamentou que "nossas aduanas sejam tão frágeis", concluindo com um "Convoco ao Governo Estadual e Federal para que tenhamos uma ação conjunta para debater isso".

A situação dos "índios" cujo termo mais apropriado e em uso nas Américas é "povos originários" não é caso de solução exclusiva das forças policiais e migratórias. 

É hora de lembrar da existência da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho que trata da migração e da mobilidade indígena fronteiriça (não são migrantes) e as diferentes maneiras de solucionar o problema lembrando dos 356 anos de má sorte e isso só no nível local.  

Brasil, Paraguai e Argentina têm que conversar nos três níveis de governo para encontrar  uma maneira de facilitar a vida desse povo roubado seguindo a orientação e visão da Convenção 169. 

Mulheres kaingangs dormem na rua devido ao fechamento da CAPAI

Foz do Iguaçu, das três cidades imediatas da Trifronteira é a única que não tem o privilégio de sediar uma aldeia guarani, mas já teve (voltaremos ao assunto). 

Isso poderia ser corrigido com a criação de uma casa de passagem (não precisa ser casa, basta ser um terreno de passagem com uma choupana onde possam vender artesanatos) como tem em Curitiba onde abrigam-se as mulheres kaingangs que vão à capital vender artesanatos. Conversemos com Curitiba para trocar experiência e com todos os atores incluindo os "índios".  

Nota

1) A Casa de Passagem de Curitiba está fechada por causa da pandemia e não tem data para reabrir enquanto isso as mulheres indígenas, especialmente kaingang, estão acampadas no lado de fora (origem da foto) da casa. 

2) A próxima publicação: Assimetrias na Trifronteira quanto à visão dos habitantes originários

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