domingo, 15 de setembro de 2024

Meu primeiro emprego: um hotel, uns náufragos e um navio grego

Antigo Hotel Beiriz: meu primeiro emprego. A porta de entrada continua no mesmo luigar. Hoje sede da Polícia Científica de Alagoas 

Foi acrescentado uma proteção para os veículos 

Aviso: Série Memórias / Texto longo

Fui informado que o prédio acima, hoje é a sede da Perícia Oficial de Alagoas sob a tutela da Poiícia Civil do Estado. Mas para mim este prédio abriga grandes lembranças do final da adolescência e começo da idade adulta. 

Chuto que andava na casa dos 18 anos quando consegui um emprego nele. Fui contratado como recepcionista.Trabalhei no hotel em todos os horários. Das 06h às 14h, das 14h às 23h e das 23h às 6h. Era para ganhar experiência. Eu gostava do horário das 14h às 23h porque me dava mais oportunidade de interagir com os hóspedes. Eu não me lembro de nenhum hóspede ruim. Mas se forço a memória um pouco ainda me lembro de uns 15 nomes dos bons hóspedes. 

Clientes que marcaram

Susana Echeverría é o primeiro. Uma argentina linda, para os meus olhos, que fazia parte de uma equipe de vendas. Não me pergunta vendas de quê. Logo que chegou notei que ela estava doente. Parecia uma gripe. Depois do check-in, numa hora mais tranquila na recepção, fui à cozinha e pedi um chá alagoano quente, estilo chá da vovó, com um comprimido. Talvez uma melhoral. 

Levei o chá pessoalmente. Ela adorou, agradeceu e melhorou. Assinei a comanda. Muita gente desconfiou das minhas intenções e lembrou que hóspedes não era, para o meu bico. Confesso que eu estava apaixonado pela minha ciiente de Buenos Aires. 

Outro cliente, desta vez um homem para que elimine-se qualquer dúvida, se chamava  Earl Boden, um capitão de navio, de nacionalidade hondurenha e que apesar disso não falava espanhol. 

Eu estava no meu intervalo, quando a chefia me chamou para atendê-lo porque não havia ninguém que falasse inglês naquele momento ou que entendesse o inglês caribenho do Mr Boden.  Ele preencheu a ficha, entreguei-lhe a chave e o levei ao apartamento. O elevador era daqueles que só era dirigido por um ascensorista. Eu era ascensorista também além de também atender à mesa telefônica à noite (PABX) quando entrava chamada. 

Ele me disse que precisava sair cedo para pegar o avião da manhã para Recife. Ele contou que estava em viagem de trabalho. Ele deveria ter assumido o comando de um navio ancorado no Recife mas como o voo com tantas escalas tinha sido longo, ele dormiu e só se acordou com avião partindo para Maceió. Mais tarde o Sr. Bodem desceu, veio à recepção e conversamos um pouco mais. Eu queria saber como um nativo de Honduras é nativo do inglês. 

Daí ele deu uma aula sobre a costa caribenha de Honduras e a existência de comumidades na Costa de negros de língua inglesa e sobre uma ilha hondurenha chamada Roatan onde a maioria da população fala inglês (ou falava). 

Náufragos no hotel
 
En certa ocasião, no turno da madrugada, escutei apitos insistentes de um navio no porto. Era um sinal de SOS. O hotel não era tão perto do porto mas o mar ficava no final ou começo da rua. 

O Hotel estava com boa lotação. Só havia dois apartamentos livres. O chamado de SOS do navio parou. Pensei que estivesse tudo resolvido. Mas por volta das 2h da manhã chegam veículos do Corpo de Bombeiros, não eram caminhões de incêndio, eram mais carros oficiais do tipo de transporte. O oficial me pede gentilmente mas dando ordem para arranjar apartamentos para 15 pessoas. Argumentei que não havia. Só tinha dois duplos. 

O oficial disse que eu me virasse porque eles poderiam ficar até na receção. O meu companheiro de recepção queria lavar a mão e sair fora. 
 
Pedi para ver a galera. Eram 15 "náufragos", 14 gregos e um palestino com algum documento egípcio chamado Mike Afifi, residente na Itália. Conversei com o Afifi, definitavamente o líder,  que me disse que eles tinham dinheiro para pagar, que não precisava de luxo, que podiam dormir até no chão. Eles só precisavam de aconchego, lençóis quentes porque todos estavam com frio e pelo menos dois precisariam de cuidados médicos na manhã seguinte. 
 
Enquanto conversávamos, a solução se apresentou à minha cabeça. Eu tenho dois quartos. Posso tirar as camas e colocar colchões. Aceitam? Daí corri para a recepção e liguei para o dono do hotel, o português Carlos da Silva Nogueira  avisando que eu iria fazer essa operação e que os "náufragos" tinham dinheiro e queria instrução sobre como  deveria cobrar de maneira que tivessem direito ao café-da manhã. Instruído pelo Sr. Nogueira sobre o café-da-manhã e  liberado, executei a ação. 

O Mike falava um grego fantástico e fez que com em meia hora, todos estivessem nos quartos. Todos de cueca, roupa secando onde era possível, e mais interessante, dinheiro em dólar e libras esterlinas secando nos espaços vazios do quarto. 

O dono do hotel veio excepcionalmente cedo para tomar cafe-da-manhã e ver o estrago nas instalações. Os meus 15 hóspedes desceram super bem comportados, cada um vestido como pôde, tomaram café e seguiram, para um lugar combinado, onde "liderei" uma curta expedição até uma loja de roupa popular que por casualidade pertencia a um grego. Voltamos ao hotel todos bem vestidos e prontos para várias cessões de colocar as coisas em pratos limpos. 

Os nossos hóspedes naufragaram na tentativa de chegar à terra, escondidos, secretamente antes do navio ter realmente aportado. O navio estava fundeado - quer dizer 'ESTACIONADO" em alto mar que no caso do porto de Maceio nem parece ser tão "alto assim". Colocaram um daqueles barcos que o navio carrega como segurança, superlotaram o barco e partiram em direção à Praia da Avenida. O mar estava agitado, o barco virou e eles só se salvaram porque eram marinheiros. Daí o pedido de SOS, e a comumincação às autoridades sobre o ocorrido. 

A primeira visita oficial da manhã foi da Polícia Federal. Lembremos que o ano era 1975, pode ser um ano a mais ou menos, e o presidente da República era o general Ernesto Geisel.  Os agentes queriam saber quem autorizou a hospedagem? Eu expliquei que meu trabalho era hospedar. E que os bombeiros trouxeram os hóspedes vítimas e me mandaram hospedar. Lembrei que a obrigação do hotel é receber, hospedar e dar conforto ao hóspede especialmente em caso de emergência humanitária.  

Navio MS Master Dáskalos (IMO 5228516) carga geral, construído em 1959 Fem Riejeka, Croácia, para a Grécia. Desmontado em Kaoshiung, Taiwan 1982. Fonte foto ShipSpotting

Em seguida chegaram o agente do navio da Agência Wilson Sons, um oficial do navio e uma equipe médica que tinha convênio com a agência. Até então eu nem sabia que existia agente de navio. A partir daí o grupo do que nesse  momento já eram os meus hóspedes e eu já estava comprando todas a brigas para defendê-los, começou a ser dividido. 

Quatro foram internados entre eles o Mike Afifi, um rapaz de uns 22 anos chamado Stávros Polyzópoulos. Stávros sigifica Cruz. Não lembro do nome dos outros dois porque a internação deles foi curta. 

O Stávros ficou uns 15 dias e depois da alta, foi levado para Recife de onde voou para a Europa. Mike Afifi ficou mais de um mês tempo que aproveitou para ficar bom e comprar todas as brigas possíveis com a agência de navegação e o capitão. Desde o primeiro dia de internação, eu acompanhava os marujos no hospital e logo se incorporaram outros alagoanos voluntários. Destaco o José Costa e a Alice Mantovani.   

Tudo pelo Mike
 
Como o Mike era líder, o capitão o despediu.  Por contrato, além da recisão, o marinheiro receberia uma passagem aérea para o país de origem. O Mike Afifi considerava que o país de origem seria a Itália onde fora contratado. Mas o apitão queria mandá-lo para o Egito onde ele residira como refugiado. Esta quebra-de-braço era perigosa porque ele teria perdido o direito de residência após sair do país e possivelmente seria preso para futura deportação já que a vida de palestimo não era fácil naquela época e continua não sendo.  

Como o Mike iria perder de qualquer maneira, eu, à revelia do hotel e já por conta própria, fui à Agência Central dos Correios e enviei um telegrama ao Presidente Ernesto Geisel pedindo ajuda e contando a situação do Mike Afifi. Para suprersa de todos, um pouco antes do prazo do embarque forçado do Mike, chegou uma ordem superior, ninguém sabe de quem, dizendo que o estrangeiro fosse enviado para o país que ele quizesse e que a situação fosse resolvida imediatamente. Foi uma experiência inesquecível. Obrigado presidente! 

Assim no dia combinado, o Mike foi escoltado pela Polícia Federal para o Aerporto Internacional dos Guararapes de onde embarcou para Roma com destino a Pescara na Itália. Me correspondi com Mike e Stávros por um bom tempo depois. Continuei no Hotel Beiriz por um tempo. Até hoje agradeço a oportunidade dada pelo proprietário do Hotel, o Senhor Carlos da Silva Nogueira.   


Era uma felicidade colar o sticker do hotel na maleta dos hóspedes. Era um ritual (Flickr)

Nota 

O Hotel Beiriz funcionou entre 1958 e 1990 na Rua João Pessoa, nº 290, Maceió como uma iniciativa do empresário português Carlos da Silva Nogueira (In Memoriam). A tradição hoteleira  foi continuada por sua filha Mariza e o esposo, o médico Ismar Malta Gatto com a Rede Brisa de Hotéis: Brisa Praia, Brisa Jatiúca e Brisa Tower. Informações sobre a hotelaria de Maceió no período pesquisada no trabalho acadêmico de Juliana Costa Melo da UFAL





quarta-feira, 11 de setembro de 2024

"A Imagem" de uma época: Mulher carrega filho na cabeça para enterrar

 

Mujer paraguaya enterrando a sus hijos / Mulher paraguaia enterrando a seus filhos / Parguayan Woman Burrying her sons 

Há mais de dois anos esta imagem me persegue. Ela foi criada pelo ilustrador Solomon (Sol) Eytinger para a antiga revista semanal Harper's Weekly de Nova Yotk 1870. O ilustrador se baseou nos rascunhos do último embaixador dos Estados Unidos no Paraguai durante a Guerra da Tríplice Aliança, General Martin MacMahon. Mães carregando filhos mortos na cabeça, acomodados em uma tábua era, segundo MacMahon, uma vista comum. 

Fiz um gravação no meu canal no Youtube sobre o tema. No vídeo está o link para um Blog meu dedicado à História para "historiadores amadores", internacionalmente conhecidos como History Buffs. No vídeo dou uma ideia sobre a necessidade de se organizar Expedições para History Buffs ao Paraguai. 

A rota que a mulher da foto seguia, feita pelo  general MacMahon, os soldados, velhos, crianças e outras mulheres ligadas a outros capítulos - está muito bem identificada. Com esta nota nota fica o convite. Você gosta de história? Você se vê como um History Buff? Veja o vídeo ainda em baixa qualidade, acompanhe este blog e o Blog dos Buffs que um dia será especializado nisso. Quer conhecer os locais da rota? Há várias possibilidades. No Paraguai uma coisa nunca é só uma coisa.       

O vídeo no meu canal: 


O Texto do Harper's no Blog dos History Buffs 

(Com tradução experimental do inglês para o português, espanhol e guarani - Há link no vídeo)    

Imagem de parte do texto de 26 de fevereiro de 1870, faltando dois dias para o fim da Guerra da Tríplice Aliança



Empresa de turismo de Puerto Iguazú transforma banhados em riqueza ambiental e investe em sustentabilidade

Arquitetura homanageia projetos de 1935 dos primeiros edifícios públicos da cidade

Da Assessoria

O Hotel El Pueblito Iguazú e o atrativo turístico Biocentro, em Puerto Iguazú/AR, integram a preservação do meio ambiente e a cultura da região missioneira no setor de turismo através da preservação da fauna e flora.

El Pueblito Iguazú Hotel Temático

A empresa argentina Cuenca del Plata, sediada em Puerto Iguazú, vem redefinindo a maneira como áreas ambientalmente sensíveis são tratadas. O que muitos veriam como uma área a ser drenada e aterrada, o grupo transformou em um símbolo de preservação e desenvolvimento sustentável. “Nós não precisamos mexer na natureza para construir nossas empresas. Pelo contrário, podemos usar as riquezas naturais para atrair a atenção dos visitantes e conviver com a preservação do meio ambiente”, explica a CEO do Grupo Cuenca del Plata, Patrícia Duran.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Uma Rosa por qualquer outro nome (os nomes das Cataratas)


Saltos do Rio Iguaçu

As fotos mostradas aqui foram retiradas de uma publicação do site Memória Rondonense. Elas mostram fotos antigas das Cataratas do Iguaçu tirada por visitantes e residentes dos tempos que nos precederam. Ou seja daqueles que vieram antes de nós. O que destaco com estas fotos é o fato de que as Cataratas do Iguaçu nem sempre foram o único nome delas.  

Nas fotos, as Cataratas aparecem com o nome "Salto do Rio Iguaçu" em português e Saltos del Iguazú, Saltos del Río Iguazu em espanhol. Salto ou Saltos paracem ter sido muito utilizado no passado. Quando o nome Cataratas do Iguaçu venceram e apagaram os "saltos"?

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Rio Paraná, onde o remo não pega direito

 

Clique sobre as fotos para ampliar (usando a lupinha com  +) para ver detalhes

Os barcos com motores grandes, 60, 100, 200 cavalos ou mais não sentem. Aqueles com motores menores vão sentir uma pequena variação na pressão e um balanço ou desequilíbrio ao cruzar estes "redemoinhos". Não tenho uma palavta técnica para eles. Porém os remadores de embarcações como canoa e caiaque (kayak) sentem que nessas áreas no rio Paraná em que se formam esses "projetos de redemoinhos", o remo parece não pegar direito ou seja a resistência da água à presão do remo diminui ou não responde. Por isso, caso o remador, entre nesses espaços ficaria mais dificil de sair dele especialmente em caso de emergência. No caso do kayak ainda, a perda de sustentação se aplica também às laterais do barco. Quer dizer é facil perder o equilíbrio e virar. Já cheguei perto disso e só não virei porque os céus protegem os ignorantes (obrigado Universo) já que eu não tinha e não tenho domínio da técnica de esquimotagem  (vídeo).     

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Como os Mbya Guarani se reinventaram após serem expulsos da Ilha Yacyretá?

Foi-lhes tirada a ilha paradisíaca, mas não o espírito de luta e de reafirmação da sua identidade como povo indígena Mbya Guarani. Esta é a história dos membros da comunidade Pindó, em San Cosme y Damián, Itapúa, narrada por um de seus principais protagonistas, o poeta, escritor, professor e jornalista indígena Brigido Bogado, fundador da primeira escola indígena da região*


Professor Brigido Bogado sob uma foto que lhe rende homenagem na escola que ele fundou. Foto de Desirée Esquivel co-fundadora do El Otro País 


Por Brigido Bogado da comunidade Mbya Pindó, 
San Cosme y Damián, Itapúa, Paraguai

Era extensa a ilha Jasy retã, na região de Itapúa, onde hoje fica a grande hidrelétrica do mesmo nome, margeada pelo majestoso, pacífico e às vezes terrível rio Paraná. Lá, o povo indígena Mbya Guarani vivia pacificamente e sem muitas preocupações.

O rio Paraná oferecia peixes abundantes e variados. A densa selva que então existia forneceu seus frutos, sua rica fauna, os remédios necessários para equilibrar a alma e o corpo, porque como diziam os opygu'a (líderes religiosos), as doenças vêm nos alertar sobre a falta de harmonia, do desequilíbrio entre a alma e o corpo.

A ilha Jasy retã (ou Yacyretá, como se escreve oficialmente, mantendo a antiga grafia do guarani, que significa 'Terra da Lua') era como a Yvy Mara'e'y, a mítica Terra sem Mal, para os habitantes Mbya , aqueles que andavam nus e também seminus, porque na mente e na alma dos Mbya não havia maldade, não havia malícia ou ideia pecaminosa de andar sem roupa. Para nós, mostrar o corpo é algo natural. O corpo tem um propósito específico, reproduzir e permitir que as gerações continuem.

Sim, às vezes você podia ouvir o mbokapu (barulho de armas), música alta, talvez comemorando um aniversário. Foi exatamente isso que se percebeu naquela época, senhores. 


80% da Ilha foi inundado. Foto Museu de História Natural do Paraguai
 (Parte do que restou são as Dunas de San Cosme y San Damián) 

(

O anúncio de uma grande inundação

No grande teko'a eram realizados os ritos, no opy (recinto sagrado) liderado pelos yvyra'ija (líderes religiosos) e toda a comunidade comparecia. Este rito foi realizado no início da primavera, época em que a Mãe Natureza se reinicia em todos os aspectos.

Os líderes religiosos pediram esclarecimento e prenunciaram o que poderia acontecer. E justamente num desses ritos anunciaram que as águas do rio Paraná subiriam muito e inundariam tudo; mas não como quase sempre acontecia, que as águas subiam e depois baxavam. O anúncio dizia que desta vez a água não baixaria mais, a inundação seria permanente e nós, Mbya, teríamos que procurar outros lugares para viver.


O anúncio feito durante aqueles ritos, segundo os líderes religiosos, falava que haveria um grande estrondo nas proximidades, como se enormes raios do céu caíssem sobre as pedras, as pedras saltassem no ar e o local seria completamente e permanentemente modificado.

E foi exatamente assim. Depois de um tempo desses anúncios, vieram as enchentes, a água do rio Paraná transbordou sobre nossas terras e não recuou. As grandes explosões ocorreram e os Mbya fugiram das águas o melhor que puderam, com nossos animais, nossas canoas e outros ajudados por alguns Juru'a (não indígena), que se solidarizaram com eles.

As obras da grande barragem começaram. Em 1973, foi assinado em Assunção o Tratado de Yacyretá, para a construção do grande projeto hidrelétrico. De acordo com as leis, deveria ter sido feito um trabalho prévio com os habitantes originários da ilha, para proceder a sua  transferência, mas tal coisa nunca aconteceu com os Mbya. Se aconteceu com muitos não indígenas, os Juru'a, que sabendo o que iria acontecer, construíram casas precárias, fizeram plantações e criaram alguns animais domésticos, para depois serem indenizados, como se fossem os antigos habitantes da ilha.

Nada disso aconteceu com os Mbya. Os membros do meu povo tiveram que deixar a ilha à força. Fomos expulsos. Algumas famílias mudaram-se para terras argentinas, onde também havia alguns colonos Mbya. Outros se estabeleceram nos arredores da cidade de Ayolas. Outras famílias partiram para San Ignacio, Santa María, San Juan de Misiones. Outros emigraram para a zona do alto Paraná e Itapúa, onde ainda existiam montanhas e territórios virgens, todos de influência Mbya. Suas rotas eram extensas e cobriam grandes áreas.

Ajuda solidária

Na década de 1980, após o início da construção da barragem, algumas pessoas se interessaram pela difícil situação de abandono em que viviam as famílias Mbya perto da cidade de Ayolas, Misiones e outros locais próximos da barragem.

Muitos dos que foram expulsos da Ilha de Jacyretá sobreviveram por conta própria, em situações muito precárias, sem ter moradia própria. Esta realidade chamou a atenção dos membros da Equipe Nacional de Missões, da Conferência Episcopal Paraguaia (CEP), organização que vinha trabalhando na assistência aos povos indígenas.

Desta forma, com autorização do então bispo de Encarnação, Dom Juan Bockwinkel, os Mbya afetados pela construção da barragem passaram a trabalhar com o coordenador da equipe, o padre Wayne Robins, a advogada Mirna Vázquez, já falecida, que era especialista em direito indígena e outras pessoas.

Da região de Itapúa, Crescencia Carísimo e o autor desta nota, Brigido Bogado, juntaram-se à equipe.

A primeira coisa que fizemos foi um censo para registar todas as famílias e pessoas Mbya que estavam na região, expulsas das suas terras e abandonadas pelas autoridades.

Muitas reuniões foram realizadas com os líderes. Muitos deles não queriam saber nada sobre como lidar com a papelada, pois diziam, a partir de sua visão de indígenas: “Ñande Ru kuery (nossos deuses) nos colocaram nestas terras para viver e nos desenvolver livremente”. Nada mais era necessário para eles.

Depois de muitas conversas, um grupo concordou em realizar os procedimentos que os membros da Equipe de Missões aconselharam a fazer junto às autoridades da Entidade Binacional Yacyretá, responsável pela construção da barragem. Foi um longo processo para eles reconhecerem que havia famílias Mbya que viviam na ilha antes da construção da hidrelétrica, que nunca foram levadas em conta, que foram expulsas arbitrariamente.

Por fim, reconheceram oficialmente 28 famílias como ex-habitantes. A EBY concordou em comprar cerca de 425 hectares de terras de dois proprietários que concordaram em vender, para localizar as nossas famílias, nos arredores da cidade de San Cosme y Damián.

Em Outubro de 1989, poucos meses após a derrubada do governo do General Stroessner, entramos nas nossas novas terras. Decidimos dar à nossa nascente comunidade o nome de Pindó, que corresponde a uma palmeira tradicional da região (nome científico: Syagrus romanzoffiana), que para os Mbya é uma planta muito especial, porque utilizamos todas as suas partes, o tronco, o folhas, os frutos, tanto como alimento como para nossas construções, bem como para fabricar implementos, utensílios, artesanato, etc.

O presidente que derrubou o ditador Stroessner, o general Andrés Rodríguez, veio visitar a nossa comunidade e nos deu o título de propriedade dos 425 hectares, com o qual conseguimos garantir que não poderiam mais nos tirar essas terras. Rodríguez também inaugurou a escolinha indígena que construímos e da qual fui o principal divulgador e o primeiro professor indígena, tanto que no início funcionou na minha casa, onde dava aula para as crianças, até que conseguimos construir uma sala de aula. Nossa escola, que cresceu muito nesse tempo, é a primeira escola indígena que começou a funcionar em todo o Departamento de Itapúa.

Grupo de Teatro Yvy Mara'e'y  da Comunidade Pindó

Uma comunidade modelo

Depois de ficarmos muito tempo sem terra, abandonados, morando de qualquer forma em qualquer lugar, finalmente tínhamos um novo lugar para construir nossa comunidade como povo indígena. Havíamos sido expulsos da nossa ilha paradisíaca, mas tínhamos novamente um lugar que era legalmente nosso, não tão grande quanto a nossa cultura exige, mas importante para seguirmos em frente.

A Comunidade Pindó está localizada a 368 quilômetros ao sul da capital Assunção, a 78 quilômetros de Encarnación, capital do departamento de Itapúa e a 18 quilômetros das cidades de San Cosme e San Damián. A estrada pavimentada que leva a San Cosme passa pela nossa comunidade.


Atualmente são 46 famílias morando em Pindó. Temos serviço de electricidade, pagamos o consumo, embora acreditemos que deveria ser gratuito para os Mbya, como reparação por nos terem expulsado da nossa casa, para a construção da barragem.

Ao lado da estrada que leva a San Cosme y Damián

Pindó vem se organizando, buscando ser uma comunidade indígena modelo no resgate de nossas tradições ancestrais, embora ainda precisemos realizar muitas conquistas. Nossas famílias se dedicam à agricultura e aos trabalhos esporádicos, já que os indígenas nunca recebem o que está estipulado na lei. 

Procuramos oferecer alternativas ao turismo, principalmente com o artesanato que nossos avós nos ensinaram. Hoje contamos com artesãos hábeis de nossa comunidade que fazem lindos trabalhos de escultura em madeira kurupika'y, cedro peterevy, folhas de pindó, além das linhas de cestaria Mbya com tiras de takuarembo, ñandypa e guembe. As amostras esculpidas em pedaços de madeira recriam figuras de diversos animais e outros objetos, que ficam expostos em barracas de vendas ao longo do percurso, bem como em feiras periódicas em locais turísticos.

Um fator muito apreciado é que os meninos e meninas de Pindó formaram um Coral e um Grupo de Dança, conhecido como Teko Marãe'y, que tem feito apresentações bem sucedidas em feiras internacionais do livro, festivais, eventos acadêmicos e turísticos.

Em nossa escola aprendemos desde a pré-escola até o primeiro ano, com professores indígenas e não indígenas. Temos muitos jovens, meninas e meninos, que estudam na universidade e trabalham no comércio. No meu caso particular, além de poeta e escritor, professor, membro da Sociedade Paraguaia de Escritores (SEP), publicando livros, pude concluir meus estudos de jornalismo na Universidade Católica de Encarnación, percorrendo os 78 quilômetros até lá e depois retornando à, comunidade, no meio da noite. Dessa forma sacrificada, em 2021 me graduei com honras, tornando-me o primeiro indígena Mbya Guarani a ser formado em Ciências da Comunicação, com ênfase em Jornalismo. Hoje me alegra fazer parte da equipe de jornalismo do El Otro País como colaborador e assessor nas questões indígenas.

O artesanato é um importante modo de preservar a cultura e ajudar economicamente 



Podemos afirmar que a qualidade de vida que os habitantes originários da Ilha Jasy Retã tinham, antes da construção da barragem, infelizmente ficou para trás, pois a extensão de terra onde hoje está localizada a nossa Comunidade já não possui as riquezas naturais que costumavam ser abundantes, como os peixes variados, os frutos abundantes das montanhas, a fauna variada e o céu imenso respirando ar de liberdade, mas mesmo assim nos organizamos para sustentar uma comunidade que busca resistir às mudanças culturais e seguir em frente, mantendo viver a nossa identidade Mbya, adaptando-nos aos novos tempos, mas sem esquecer o que os nossos antepassados ​​nos deixaram. 

É o espírito das soluções com as quais procuramos responder à situação dos povos indígenas, que continua crítica em diversas regiões do país.

Repórter do Canal 8 com o professor e jornalista mbya Brigido Bogado e a artesã Irma Cabral com uma de suas peças



Notas:
* Abertura de Andrés Colmán Gutiérrez
Com exceção da primeira foto da jornalista Desirée Esquivel e a foto da Ilha, as demais fotos são do acervo no Facebook do professor Brigido Bogado. San Cosme y Damián é um município do Departament de Itapúa, Paraguai que abriga a antiga Missão Jesuita de San Cosme y San Damián onde a igreja principal funciona até hoje. A missão é uma das sete altamente preservadas que formam o patrimônio cultural do Paraguai. Duas são patrimônio mundial / UNESCO  
Postado originalmente em 29 de abril de 2022 - Artigo original